'A gente não quer ser mais visto como doente': a vida de quem é alvo de gordofobia


Pessoas gordas precisam lidar com comentários preconceituosos e a falta de acessibilidade no seu dia a dia, uma discriminação que gera traumas e não é considerada crime. YouTuber criou um canal em que relata preconceitos com gordos Arquivo Pessoal O cinto de segurança da jornalista e youtuber, Alexandra Gurgel, de 28 anos, não fechou durante sua última viagem aérea. O episódio, que aconteceu em setembro, tornou-se rotina. No entanto, desta vez a companhia aérea informou que não havia extensor para adaptar o item de segurança e ela teve de fazer o trajeto de São Paulo a Salvador sem cinto. "É uma situação constrangedora. Foi péssimo, me senti desprotegida e diferente dos demais. Conheço pessoas gordas que evitam viajar de avião só para não passar por isso", comenta a youtuber. Nas viagens aéreas, Alexandra sempre recorre a cadeiras maiores, para que possa se sentir confortável. "Eu sou alta, tenho 1,74m, e possuo 127 centímetros de quadril, então quando posso, compro o assento mais espaçoso, mas ainda assim preciso do extensor." A dificuldade durante o voo é apenas um exemplo das tantas adversidades encontradas por Alexandra ao longo de sua vida, em razão do sobrepeso que a acompanha desde a infância. A jornalista demorou décadas até aprender a lidar com o fato de ser uma pessoa gorda. No caminho da auto-aceitação, chegou a fazer uma lipoaspiração em diversas partes do corpo e tentou o suicídio. Os empecilhos enfrentados por pessoas gordas estão em todos os lugares. Seja na hora de comprar roupa, escolher lugar para sentar ou ao passar em uma catraca, as dificuldades mostram que nem tudo é inclusivo. Além disso, há ainda os diversos comentários ofensivos e as piadas preconceituosas e as observações maldosas disfarçadas de preocupação. Isso tudo recebeu o nome de gordofobia. O termo recente é utilizado para definir o preconceito enfrentado por quem tem sobrepeso. Apesar de ter ganhado uma definição, os atos não são considerados crimes. O problema não é recente. Olhares tortos para pessoas gordas já eram comuns na Idade Média, quando a igreja passou a considerar a gula como um dos sete pecados capitais. "O cristianismo fez com que tudo fosse muito ponderado, inclusive o corpo. Então a pessoa não poderia ser muito gorda, porque isso seria um pecado. Além disso, a comida era extremamente escassa na Europa, durante os períodos frios. Não havia alimentação para todos e não era interessante que as pessoas fossem gordas", explica a historiadora Débora Casanova. "Na Idade Média, havia a necessidade de a igreja ser responsabilizada pela fome. Para justificar que a pessoa não poderia comer muito e acabar deixando o outro sem nada, acabou que a gula se tornou pecado", acrescenta. A gordofobia chama a atenção em um país cuja população está cada vez mais acima do peso. Conforme levantamento divulgado pelo Ministério da Saúde neste ano - por meio de análise da Pesquisa de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel) -, a população obesa no País passou de 11,8% em 2006 para 18,9% em 2016. A mesma pesquisa apontou que o excesso de peso também aumentou nos últimos 10 anos. Em 2006, o número era correspondente a 42,6% dos entrevistados. O índice subiu para 53,8% no ano passado. Os levantamentos são feitos com base no Índice de Massa Corporal (IMC) da população. A discriminação Os comentários maldosos e a sensação de ser diferente acompanharam Alexandra Gurgel desde a infância. "Eu sou gorda desde sempre. Quando criança, tentei muitas dietas, mas nada dava certo, porque era tudo muito restritivo", relembra. Na adolescência, o sobrepeso começou a incomodar ainda mais a youtuber. "Eu era a única pessoa gorda na minha família e entre os meus amigos. Os meus parentes costumavam dizer que eu não era normal e que poderia ter um infarto e morrer a qualquer momento." As críticas vindas da própria família também eram ouvidas pela universitária Isabela Venâncio, de 23 anos. "Eu comecei a engordar na infância e isso preocupou a minha mãe. Hoje temos uma relação melhor, mas ela sempre repetia: 'se você emagrecer vai ser melhor e vai ficar mais bonita'", conta. A jovem também lidava com comentários maldosos na escola. "Na pré-adolescência, os meninos me xingavam e as meninas não andavam comigo. Certa vez, um menino me falou uma coisa muito pesada e eu comecei a chorar na sala. Eu não lembro o que ele falou, parece que meu cérebro deletou." Image caption Professora conta ter sofrido discriminação desde criança por ser negra e gorda Arquivo pessoal A professora Laine Souza, de 35 anos, lida com o preconceito de diversas formas desde a infância. "Eu era uma criança que sofria por ser negra e gorda. A minha família teve boas condições e eu estudava em bons colégios. Em algumas épocas, era a única negra e gorda da escola. As pessoas me viam diferente por isso." Para evitar que os comentários ofensivos o afetassem, o publicitário e youtuber Bernardo Boechat, de 27 anos, passou a criar uma espécie de autoproteção. "Aprendi a lidar com isso cedo, porque sempre fui xingado na escola e sofria humilhações por ser gordo. Não havia nenhuma proteção na escola, viam isso acontecer e não faziam nada. Então, eu tive que criar uma 'casca' para que essas coisas não me afetassem tanto", diz. O perfil mais combativo é adotado por algumas pessoas que são alvos de gordofobia, como no caso da empresária Allyne Turano, de 31 anos. Ela engordou durante a adolescência e passou a ser alvo de piadas. "Eu comecei a perceber os xingamentos e sempre os respondia. Nunca deixei as pessoas me diminuírem", pontua. Para ela, qualquer tipo de comentário sobre o peso é uma espécie de invasão. "A pessoa quando engorda, parece que vira de domínio público e todo mundo tem o direito de falar o que quiser, com a desculpa de que é uma ajuda. Na verdade, é porque o gordo incomoda." A psicóloga Iolete Silva explica que a gordofobia traz consequências como constrangimento e dificuldade de socialização. "As pessoas se sentem inadequadas, como se houvesse algo errado com elas. É como se elas não fossem boas o suficiente para estar com os outros e para receber afeto", conta. Ela detalha que a psicologia pode ter papel fundamental para auxiliar quem enfrenta tais situações. "A gente tenta mostrar que a pessoa que exprime esse preconceito é quem está errada e não quem é o alvo." "É fundamental que as pessoas que passam por situações assim possam expressar seus sofrimentos, para que possam ser acolhidas o quanto antes. Muitas vezes elas escondem esse sentimento e isso é ainda mais prejudicial", acrescenta Iolete. Dificuldades do cotidiano Os comentários relacionados ao peso não incomodam mais o publicitário Bernardo Boechat, que afirma que sua maior preocupação atual é com a acessibilidade. "A primeira coisa que precisamos fazer é olhar em volta, para ver se cabemos no mundo. Sempre analiso, antes de sair, preciso avaliar se as cadeiras vão suportar meu peso. Em avião e ônibus, sempre pesquiso se a cadeira vai me aguentar, por isso cheguei a ficar quatro anos sem viajar", conta. "Não interessa o quanto eu me ame e me aceite, a sociedade continua sendo contra mim. Não é porque eu me amo que vou conseguir passar em uma catraca de ônibus, que vou conseguir assento no avião ou que vou encontrar roupa com facilidade. Não adianta eu me achar lindo e maravilhoso, porque a estrutura gordofóbica vai dizer que não faço parte daquilo ali", completa Boechat. O episódio da falta de extensor no cinto de segurança é apenas uma das situações que Alexandra Gurgel cita sobre casos de inacessibilidade. Ela se recorda de diversos problemas enfrentados por pessoas próximas. "Eu fui com um amigo ao teatro, para assistir a um show, e não havia cadeira para ele sentar. Ele ficou desconfortável na ponta da cadeira, a gente assistiu cinco músicas e foi embora. Eu também tenho uma amiga que está grávida e não tem onde ter o filho, porque a maca não suporta o tamanho dela." "É muito mais fácil emagrecer e se encaixar a um padrão, para não passar por esse tipo de problema, do que mudar a sociedade. Muita gente não se pergunta o porquê de as pessoas gordas não terem os mesmos direitos que as outras", assevera. A dificuldade para comprar roupas é relato constante entre as pessoas que vivem acima do peso. A universitária Isabela Venâncio conta que sempre sofria em busca de alguma peça que lhe coubesse. "As lojas oferecem até determinado número. Em muitas não há roupa no meu tamanho, já enfrentei isso várias vezes. Hoje em dia existem lojas que nem perco meu tempo entrando, porque sei que vou passar raiva e ficar triste", relata. Hoje, ela compra a maioria das roupas em lojas plus size. Publicitário diz já ter ficado quatro anos sem viajar porque poltronas de avião e ônibus não eram adequadas Caio Cal Bernardo Boechat acredita que o mercado plus size é fundamental para a inserção da pessoa gorda na sociedade. "Não é raro a gente ver as pessoas vestindo roupas e chorando, porque imaginaram que nunca conseguiriam isso. É como se elas percebessem que também têm esse direito", diz. O publicitário revela que há um ano se emocionou ao colocar, pela primeira vez, uma camiseta. "Parece bobo, porque quase ninguém passa por isso, mas pra mim foi muito importante", relata. Os contratempos para encontrar roupas também fizeram parte da rotina da empresária Allyne Turano. Em uma das vezes, ela buscava uma lingerie para comemorar os oito anos de casamento, porém não encontrou nenhuma do seu tamanho. "Acho que as pessoas pensam que gordas só devem usar roupas largas e se esconder", diz. Diante da dificuldade, decidiu criar uma loja virtual especializada em lingeries para mulheres com sobrepeso. "A minha marca existe há três anos de modo online e há um mês criei um espaço físico. O meu intuito é mostrar para outras meninas que gorda também pode ser sensual." Emagrecimento O histórico de diversas tentativas de emagrecimento faz parte das vidas das pessoas gordas. "Eu brinco que se uma pessoa quer saber sobre uma dieta, pode conversar com uma pessoa gorda. Eu já fiz muitas dietas restritivas, nas quais ficava até quatro dias sem comer. Já tomei remédios e perdi mais de 50 quilos, mas nada disso era saudável", diz Bernardo Boechat. Para conseguir emagrecer, a professora Laine Souza decidiu procurar o primeiro emprego, aos 19 anos. "Consegui trabalhar como recepcionista e com o meu primeiro salário comprei remédios para emagrecer", se recorda. Ela perdeu 12 quilos em um mês, porém começou a ter diversos problemas de saúde. "Eu comecei a ter distúrbios, por conta dos medicamentos. Eu ouvia coisas que não existiam, passava muito mal, mas não falava nada disso para ninguém. Eu pensava: 'estou sofrendo, mas ao menos estou magra'", diz. Na adolescência, Alexandra Gurgel desenvolveu depressão. "Você têm doenças paralelas por conta dessa pressão estética. Eu sofri com crises de ansiedade", diz. Aos 19 anos, ela fez uma dieta com a qual conseguiu emagrecer 15 quilos em duas semanas. "Era uma coisa muito louca, eu apenas bebia água e não comia nada, mas logo desisti disso e recuperei todo o peso." Em 2012, ela ganhou um presente da mãe: uma lipoaspiração em diversas partes do corpo. "Hoje, acredito que esse procedimento seja uma agressão ao corpo. Antes dele, eu tinha 90 quilos e depois fui para 80. O médico tirou nove litros de gordura. Isso é muito mais que o permitido", comenta. Após a cirurgia, a depressão da jornalista se intensificou. "Eu voltei a engordar tudo de novo e isso me deixou muito mal." Durante esse período, Alexandra enfrentou o episódio que considera dos mais difíceis de sua vida. "Eu não aceitei que estava engordando novamente e comecei a me culpar muito. Por isso, tentei me matar tomando todos os tipos de remédios possíveis", relata. Ela foi socorrida a tempo e se recuperou meses depois. Para a nutricionista Marcela Kotait, especialista em transtorno alimentar e obesidade, situações de gordofobia fazem com que a pessoa se sinta obrigada a emagrecer. "O padrão de beleza é de extrema magreza. Enquanto um perfil é valorizado demais pela magreza, o outro é rechaçado pela gordura", comenta. Marcela explica que a saúde vai além do peso corporal. "As pessoas com excesso de peso e obesidade sofrem com um estigma muito grande. Existe a crença de que alguém acima do peso é doente. Isso não é verdade", argumenta. "Uma pessoa obesa que faz atividade física e se alimenta de maneira adequada, pode ter os exames laboratoriais estáveis. Ela pode estar bem e saudável. Não necessariamente esse peso vai ser um fator de risco isolado", completa. Segundo a nutricionista, uma pessoa gorda deve ter os mesmos cuidados que alguém magro. "As pessoas devem se alimentar de modo equilibrado, não pode fazer restrições de grupos alimentares nem dietas malucas. A gente sabe que 95% das pessoas que fazem esse tipo de dieta vão ganhar novamente o peso. Isso aumenta a culpa, a sensação de fracasso e colabora com a pecha de que todo gordo é preguiçoso." A especialista ainda relata que o Índice de Massa Corporal não é um método confiável para definir se alguém possui sobrepeso. "O IMC vai avaliar simplesmente o peso pela altura, multiplicado ao quadrado. Se a pessoa for muito forte, vai pesar muito. Ele não consegue caracterizar a composição corporal. Uma das metodologias mais adequadas é a variação da composição corporal, percentual de gordura ou percentual de massa magra." Problemas de saúde Para as pessoas gordas, a ligação entre obesidade e doença é um dos estigmas que mais causam preocupação. "A nossa luta é para que a obesidade seja retirada da categoria de doenças. O corpo gordo, em si, não causa doença nenhuma. O que pode causar problemas são as várias doenças que podem ser associadas", justifica Bernardo Boechat. "A gente quer deixar de ser visto como pessoa doente. Queremos que nos enxerguem como seres humanos. É importante também que haja uma medicina que nos abrace, para que possamos ser a versão mais saudável de nós mesmos", complementa. Allyne Turano afirma que as diversas críticas relacionadas à saúde costumam incomodá-la. "Usam sempre essa questão como desculpa. Dizem que devemos emagrecer por questões de saúde, mas ninguém pergunta se você está realmente doente", comenta. Segundo ela, o estereótipo que relaciona a pessoa acima do peso a doenças dificulta diagnósticos de médicos. "A gente acaba não se consultando com frequência por medo de receber ataques, em vez de medicação. Certa vez fui ao endocrinologista para fazer procedimentos de rotina e saí de lá com exames para uma cirurgia bariátrica, mesmo sem ter pedido", relembra. A dificuldade para receber um diagnóstico foi vivenciada pelo bacharel em Direito João Vitor Dias, de 33 anos. O rapaz acredita que demorou nove anos para descobrir que possuía problemas nos rins, pois os médicos acreditavam que suas mazelas se restringiam ao sobrepeso. "Durante anos, meu principal diagnóstico foi a obesidade, só em 2015 descobri que sofro de insuficiência renal crônica." Atualmente, Dias faz tratamento de hemodiálise e perdeu 42 quilos em razão dos procedimentos médicos. Em paz com o peso De diversas formas, as pessoas gordas tentam buscar meios para lidar da melhor maneira com o peso. Laine Souza mudou a visão que possuía de si mesma após ouvir uma aluna lamentar o sobrepeso. "Ela tinha os mesmos problemas que eu quando mais jovem. Então, decidi que poderia lidar melhor com isso e ajudar diversas pessoas, principalmente adolescentes, que passam por essa pressão estética de um modo muito grande." Ela conta que sofre mais preconceito por ser negra do que gorda. "Acho que por eu me aceitar como gorda, e como negra também, as pessoas não chegam tanto para falar comigo sobre o meu peso. Mas em relação à raça, eu vejo nos lugares. Diversas vezes já estive em lojas e os seguranças ficaram de olho em mim", comenta. Mesmo com as adversidades, Laine tenta não se abater. "Estou em uma fase da vida em que as pessoas podem falar o que quiser, pois vou continuar fazendo o que tenho vontade." Uma das sensações mais libertadoras para Allyne Turano aconteceu há dois anos, em uma praia. "Eu nunca tive grandes problemas com meu peso, mas mesmo assim tinha meus receios. Um dia, fui de maiô para a praia, por conforto e também porque me boicotei para não ir de biquíni. Mas eu peguei sol, fiquei com a barriga branca e odiei. Depois disso, coloquei o biquíni. Foi uma experiência incrível", rememora. O biquíni também foi um dos meios de libertação de Alexandra Gurgel. "As pessoas me olhavam, mas eu não me importava. São várias amarras que existem na cabeça da pessoa gorda, mas hoje vou para a praia de biquíni, sem paranoias", explica. Além da roupa de banho, ela também conta que começou a fazer terapia, logo após se recuperar da tentativa de suicídio, e passou a estudar sobre minorias. "Eu digo que uma das minhas maiores ajudas para me recuperar de tudo isso foi descobrir sobre o feminismo, porque ele me ensinou que eu não sou obrigada a nada e posso ser da forma que quiser. Entendi a gordofobia e peguei essa causa para mim", diz. Desde 2015, ela possui um canal no qual fala sobre situações relacionadas a pessoas gordas. "Eu costumo dizer que a câmera é a minha terapeuta", conta Alexandra, que costuma ignorar as críticas ofensivas que recebe em sua página. "Não vale a pena me importar com isso, porque descobri que são pessoas frustradas." Bernardo Boechat também encontrou na produção de conteúdo para a internet uma alternativa para ajudar outras pessoas. Um dos vídeos dele, no qual explica sobre gordofobia, possui mais de 1,5 milhão de visualizações no Facebook. "Costumo receber muitas mensagens de pessoas que me dizem que não sabiam que poderiam reclamar de determinado fato. Elas percebem que não são os únicos que passam por isso. Os gordos normalmente se sentem muito sozinhos." Assumidamente homossexual, o rapaz conta que sempre sofre mais preconceito em razão do peso. "O movimento LGBT está muito avançado, há diversos debates sobre o assunto, então é mais esclarecido. Porém, o movimento gordo ainda está ganhando visibilidade, porque antes não havia isso", comenta. Ele torce para que a causa das pessoas acima do peso passe a ganhar mais visibilidade. "A gente quer uma sociedade inclusiva, aberta a todos, independente de a pessoa ser gorda ou não."

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