Casos graves de Covid-19 aumentam demanda por hemodiálise, disponível em apenas 9% das cidades do Brasil
Novo coronavírus pode causar comprometimento dos rins, principalmente em pacientes dos grupos de risco, como diabéticos e hipertensos. Máquinas caras e importadas dificultam ampliação do atendimento. Paciente faz hemodiálise na Faixa de Gaza. Momen Faiz/NurPhoto/NurPhoto via AFP/Arquivo Desde o início da pandemia do novo coronavírus (Sars-CoV-2), médicos acompanham um aumento da demanda por hemodiálise nas UTIs: a Covid-19 afeta os rins de parte dos doentes. Mas apenas 8,75% dos municípios brasileiros têm equipamentos para o procedimento, segundo dados do Ministério da Saúde. Além da parcela significativa de cidades sem aparelhos, há também uma má distribuição deles: basicamente metade (47,5%) das 29.849 máquinas está no Sudeste. A hemodiálise substitui os rins, retirando o sangue do paciente para purificá-lo e devolvê-lo ao organismo depois de filtrado. É uma técnica necessária quando o funcionamento renal está fortemente comprometido - passa a haver acúmulo de substâncias tóxicas no sangue e retenção de líquido no organismo. Ainda não se sabe por que o novo coronavírus afeta particularmente os rins: pode ser uma ação direta no órgão ou uma consequência da infecção geral. Uma das hipóteses, inclusive, chega a citar o uso do ventilador mecânico (leia mais detalhes mais abaixo). Pesquisas apontam índices significativos de falência renal em casos severos da Covid-19. A Sociedade Americana de Nefrologia estima que de 20% a 40% dos pacientes internados em UTIs tenham os rins afetados. Outro estudo (um preprint, artigo científico ainda não revisado), conduzido em Wuhan, na China, detectou um índice de 27%. No Reino Unido, o número é similar: 28%. LEIA MAIS: 33% das cidades brasileiras têm no máximo 10 respiradores mecânicos; entenda por que aparelho é essencial no combate ao coronavírus Ainda não há levantamentos nem registros de déficit desses equipamentos no Brasil para pacientes com Covid-19. Mas o Amazonas, que enfrenta uma grave crise sanitária por causa do novo coronavírus, tem apenas 273 máquinas de hemodiálise, sendo que 272 delas estão na capital, Manaus. São máquinas caras e importadas. Assim como no caso dos ventiladores mecânicos, o mundo passa a procurar as multinacionais que fabricam os equipamentos - e elas manifestam incapacidade de responder à demanda. A americana Baxter, por exemplo, afirma que “as encomendas atingiram níveis extraordinários”, tanto das máquinas quanto dos insumos usados na hemodiálise (medicamentos, tubos). “Estamos priorizando hospitais que já estão sobrecarregados”, diz o comunicado divulgado pela empresa. Sessão de hemodiálise em Périgueux, na França. Burger/Phanie/Phanie via AFP/Arquivo Há também outros gargalos no Brasil: existe o temor de que faltem profissionais capacitados para operar os equipamentos de hemodiálise. Além disso, o setor funciona basicamente com clínicas financiadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Segundo o último censo da Sociedade Brasileira de Nefrologia, o número de pacientes crônicos que necessitam do procedimento saltou de 48 mil, em 2002, para mais de 133 mil, em 2018. No entanto, a verba destinada à área não acompanhou o crescimento da demanda. “Não faltam, por enquanto, aparelhos de hemodiálise nas UTIs brasileiras. Mas, havendo um grande aumento do número de pacientes necessitando do procedimento, é capaz de termos um déficit. Para as pessoas com doenças renais crônicas, o sistema já opera no limite”, afirma Claudio Luders, coordenador do núcleo avançado de nefrologia do Hospital Sírio-Libanês (SP). O presidente da Sociedade Brasileira de Nefrologia, Marcelo Mazza do Nascimento, menciona outra informação importante: o tempo que um paciente com Covid-19 pode depender da hemodiálise. “É indeterminado, mas talvez chegue a 30 dias. São procedimentos lentos, complexos, que não costumam ser feitos no SUS. Se o número de casos no Brasil explodir, vamos sobrecarregar o sistema com uma parcela de pacientes muito maior do que a habitual”, diz. “Fora o aumento do consumo de todos os materiais, que são importados. Já falamos com o Ministério da Saúde sobre a lista de insumos essenciais”, completa. Em nota, a pasta informou ao G1 que financia os procedimentos de diálise por meio do Fundo de Ações Estratégicas e Compensação. Esclareceu também que não faz a compra direta de equipamentos - são os gestores estaduais e municipais que devem adquirir os aparelhos por meio do fundo ou de convênios. O ministério não respondeu sobre a queda do investimento no setor nem se pronunciou acerca da possibilidade de esgotamento do sistema de hemodiálise. Abaixo, entenda: como o coronavírus pode afetar os rins; por que a diálise é essencial em casos severos da Covid-19; quais as alternativas diante da possível falta de equipamentos. Para que servem os rins? Antes de entender a relação do novo coronavírus com o rim, é importante conhecer as principais funções do órgão: filtrar o sangue e tirar produtos tóxicos, gerados naturalmente pelo organismo (amônia, ureia e ácido úrico, por exemplo); regular o pH do sangue e a quantidade dele; produzir hormônios; controlar nível de eletrólitos (como sódio, potássio e bicarbonato) no sangue. Artérias que saem do coração levam o sangue até os rins. Lá, o fluido vai circular por vários vasos e sair “filtrado”, livre de toxinas. Pelas veias, ele vai voltar ao coração. Já a urina sairá dos rins e, pelos ureteres, chegará à bexiga. Como o novo coronavírus afeta os rins? O novo coronavírus agride principalmente o trato respiratório. Em casos graves da doença, no entanto, pacientes estão demonstrando também problemas renais. Não é possível saber, por enquanto, a causa disso. Há duas possibilidades principais: o vírus pode agir diretamente nos rins; e/ou os rins são afetados como consequência da infecção no organismo. Bento Santos, nefrologista e gerente médico do Centro de Diálise do Hospital Israelita Albert Einstein (SP), explica que, em casos severos, quando o paciente vai para a UTI, pode haver uma “tempestade inflamatória”. “É um processo muito grave, que leva à queda da pressão arterial e à dilatação dos vasos sanguíneos. Isso contribui para a piora respiratória, intestinal e renal”, explica. Se a pressão estiver muito baixa, o sangue não chegará aos rins, onde seria filtrado. Ou seja: o paciente para de urinar, há acúmulo de líquido, e o nível de toxina no sangue aumenta. Pode também ocorrer a formação de coágulos sanguíneos, que entopem os vasos dos rins. Quando a situação se agrava, é preciso recorrer à hemodiálise. “A Covid-19 é uma doença muito recente, os mecanismos não estão claros. Pode ser que haja uma ação direta do vírus nos rins. Mas, por enquanto, em termos de porcentagem, o que fica mais evidente é que a falência renal seja resultado da infecção geral”, afirma Santos. Outro elemento a ser considerado é que os grupos de risco da Covid-19 incluem indivíduos que, mesmo sem o coronavírus, já têm problemas renais: hipertensos (a alteração da pressão arterial atrapalha os rins), diabéticos (a diabetes causa inflamação e sobrecarga renal) e idosos (os rins ‘envelhecem’ com o tempo). Essas pessoas podem viver normalmente com problemas renais, sem a necessidade de diálise. Pacientes mais velhos, por exemplo, chegam a ter 50% do funcionamento renal comprometido - e, mesmo assim, não precisarão de intervenção. “O problema é que, quando contraem o vírus, vão para UTI, ficam entubados e terão uma perda ainda maior do funcionamento renal”, explica Luders, do Sírio. Os médicos usam uma metáfora: o paciente consegue subir uma ladeira com uma mochila de 15 kg, sem precisar de ajuda. Quando são colocados mais 2 kg ali, a sobrecarga faz com que ele pare de andar e precise de auxílio. Ou seja: uma pessoa com diabetes, mesmo com problema renal, pode não precisar de diálise. Ao ter uma infecção, o quadro se complica e talvez requeira o procedimento. E uma última hipótese que explicaria a associação entre a Covid-19 e a necessidade de hemodiálise: o próprio uso do ventilador mecânico, comum nos casos mais graves da doença, pode levar a uma sobrecarga renal. O aparelho exerce uma pressão respiratória maior, que altera o fluxo do sangue para os rins - e, faltando oxigênio para as células, elas morrem. Insuficiência renal atinge 20% dos infectados pelo coronavírus Por que a diálise é essencial em casos severos da Covid-19? A hemodiálise consegue cumprir duas das funções desempenhadas pelos rins: a filtragem do sangue e a manutenção do equilíbrio hidroeletrolítico (que é, em resumo, o controle da quantidade de água e de substâncias como sódio, potássio e fósforo). Quando os rins do paciente apresentam baixa capacidade de funcionamento (de 10%, por exemplo), os médicos podem decidir aplicar a hemodiálise. O sangue é removido do corpo e bombeado por uma máquina, que funciona como um rim artificial. Ali, o fluido vai ser filtrado e depois devolvido para o corpo da pessoa. Na França, pacientes fazem sessão de hemodiálise. Burger/Phanie/Phanie via AFP/Arquivo Para os pacientes crônicos, cujos rins não funcionam de forma autônoma, o procedimento costuma ser feito três vezes por semana, em sessões pré-agendadas de 4 horas de duração. Já para os agudos, como os infectados pelo novo coronavírus, a ideia é que a hemodiálise seja mantida até que os rins se recuperem. É a boa notícia: segundo Luders, as células renais têm a capacidade de se regenerar - diferentemente do que acontece com os neurônios, que, após um acidente vascular cerebral (AVC), morrem e não se recuperam. Até que as células renais se regenerem, a máquina vai cumprir a função de “rim artificial”. Ou seja: a hemodiálise não vai curar os rins, e sim substituí-los provisoriamente, até que eles se recuperem. Há duas possibilidades principais: hemodiálise contínua: mais cara, recomendada para casos severos e raramente feita do SUS. O procedimento pode levar 72 horas - exames mostram se uma nova sessão deve ser realizada. Por demorar mais, pode ser menos intensa, sem exercer uma pressão tão atípica no organismo. Consequentemente, o paciente tende a reagir melhor. hemodiálise intermitente: as sessões são mais espaçadas e, por isso, mais intensas. “Precisam ser agressivas, porque o paciente vai ficar 20 horas sem o procedimento, até que o próximo ocorra”, afirma Luders. “É um processo menos fisiológico. Nossos rins funcionam 24 horas por dia. É menos ‘natural’ substituí-los por uma máquina que vai funcionar por 4 horas e depois parar”, explica. A escolha pela hemodiálise contínua ou pela intermitente vai ser feita pela equipe médica, levando em conta o estado do paciente e a disponibilidade de recursos do hospital. “No sistema público, só os locais de referência vão ter a contínua, porque é mais sofisticada, custa 10 vezes mais e exige profissionais mais capacitados”, diz o nefrologista do Sírio-Libanês. “A intermitente não é a ideal, do ponto de vista tecnológico, mas é possível, do ponto de vista médico.” E o que fazer se não houver máquinas para hemodiálise? Se a equipe médica concluir que o paciente precisa de hemodiálise, não realizar o procedimento pode ser fatal. As substâncias tóxicas, que seriam filtradas pelos rins, vão se acumular no sangue: o potássio, por exemplo, em excesso, vai comprometer o coração; o bicarbonato deixará o fluido mais ácido. Além disso, haverá acúmulo de água no organismo - o líquido, ao chegar ao pulmão, levará à morte. Ou seja: assim como a ventilação mecânica, a hemodiálise também pode ser essencial nos casos mais severos da Covid-19. A diferença é que, se o problema for renal, haverá mais tempo para agir. “Quando o paciente precisa do respirador, deve ser entubado na hora. Já os rins costumam nos dar mais espaço de tempo para estabelecer a melhor estratégia”, afirma Santos, do Einstein. “É possível esperar de 1 a 3 dias, por exemplo. Na UTI, vão sendo feitos exames e avaliações clínicas, para tomar a decisão. Tudo vai depender do quadro geral”, complementa. Médico explica a operação de um respirador Se faltar equipamento ou insumo para a hemodiálise, há outra opção: a diálise peritoneal. Explicando de forma simplificada, em vez de usar uma máquina que atuará como filtro, será utilizada uma membrana do próprio corpo do paciente - o peritônio, que reveste os órgãos abdominais e é rico em vasos sanguíneos. Os médicos injetarão um líquido dialisante, por meio de um cateter, na cavidade do abdômen. Ele ficará lá até que os resíduos da corrente sanguínea passem por ele e sejam filtrados. Depois, o dialisante será drenado e substituído por um novo. Segundo o censo de nefrologia, a diálise peritoneal é cada vez menos frequente, aplicada em menos de 10% dos casos crônicos. Ela é uma alternativa principalmente nos municípios que não têm máquinas de hemodiálise, evitando o deslocamento do paciente até as capitais. “No passado, usávamos a diálise peritoneal em cerca de 30% dos pacientes agudos. Com o passar do tempo, tornou-se um método praticamente descartado, que não representa nem 5% do que fazemos na UTI”, afirma Luders. “Com as máquinas de hemodiálise, é possível definir tudo, inclusive o fluxo de sangue que circulará no organismo. Na peritoneal, vamos depender da capacidade do peritônio, é muito mais difícil de manejar. Seria uma opção apenas para os casos mais extremos, de não termos máquina”, completa. Outra alternativa, segundo os especialistas, seria gerir a distribuição dos aparelhos segundo a gravidade dos pacientes. “Você tira da hemodiálise contínua a pessoa que não está tão grave - mais precocemente do que seria feito em condições normais. E aí transfere para a intermitente. Assim, libera a vaga para alguém mais instável. É uma opção para momentos de crise”, diz Luders. Initial plugin text
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